Quinta-feira, 25 de Abril de 1974

“…Ritinha, fiquemo-nos por aqui, que o conto agora vai longo e repetido. Fecha o livro. Arruma-o em qualquer parte e manda passear os fantasmas. Fartámo-nos de falar de mortos, de velhos, de mistérios, quando afinal temos tanto para viver. Não é?” 
José Cardoso Pires, em “Dinossauro Excelentíssimo”.

Foi longa aquela semana.

O quinto dia da décima sétima semana do quadragésimo oitavo ano da ditadura.

O Portugal da noite de quarta-feira, não era o mesmo da madrugada de quinta-feira.

O que era, ninguém ou quase ninguém, saberia dizer. 

Mas estava diferente. 

Mudara.

“Meus senhores, como todos sabem, há diversas modalidades de Estado. Os estados socialistas, os estados capitalistas e o estado a que chegámos. Ora, nesta noite solene, vamos acabar com o estado a que chegámos!” Capitão Salgueiro Maia, nas primeiras horas da Operação Fim de Regime.

E que Portugal era aquele, o Portugal de 24 de Abril de 1974? Recuando no tempo, o país que encontraríamos seria, em grande se não em toda a medida, irreconhecível aos nossos olhos.

Sem Liberdade

A Censura, por exemplo, ou como passou a ser conhecida mais tarde, Exame Prévio, era uma das instituições nucleares do Estado Novo embora a sua existência fosse já longa de séculos.

Detentora de uma quase omnipresente e controladora presença, detinha o poder de interferir, total ou parcialmente em (quase) tudo o que se podia ler, escrever, publicar e ver em Portugal durante décadas.

Tanto a informação como as formas de expressão cultural eram severamente controladas, fazendo-se uma censura prévia que abrangia a Imprensa, o Cinema, o Teatro, as Artes Plásticas, a Música e a Escrita. 

A título de exemplo e por razões políticas e em nome dos celebrados ”bons costumes”, cerca de 3500 filmes, principalmente estrangeiros mas também alguns portugueses, foram proibidos antes de 25 de Abril de 1974. 

Eis alguns casos e as justificações oficiais. Sempre “a bem da nação”, obviamente:

  • Laranja Mecânica, Stanley Kubrick (1971). “Unanimemente reprovado”
  • Roma,Cidade Aberta, Roberto Rosselini (1945). “Não é autorizada em qualquer circunstância a exibição deste filme em  Portugal”
  • O Acossado, Jean-Luc Godard (1960). “Retrata situações à margem da moralidade”. Facto curioso o de ter estreado em Portugal a 23 de Abril de 1970, durante a éfemera “primavera marcelista”.
  • A Terra Treme, Luchino Visconti (1948). “Uma atmosfera contra a sociedade instituída. A simbologia comunista atesta das intenções do filme.”
  • As Rivais, Claude Chabrol (1968). “Reprovamos o filme porque fundamentalmente trata de um tema altamente imoral, homossexualidade feminina, de uma maneira demasiado realista e além disso o filme não aparenta qualquer elemento positivo, nomeadamente quanto à eventual recuperação das pessoas viciadas. Julga-se não haver vantagens na exploração dos temas homossexuais, designadamente pela forma como são apresentados neste filme, pelo que se dá a concordância ao parecer do grupo que anteriormente viu o filme.”

De chorar para nunca mais.

Sem Política

A actividade política, associativa e sindical era quase nula. Neste campo a polícia política, tivesse esta a denominação de P.V.D.E (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado), P.I.D.E (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) ou finalmente D.G.S (Direcção Geral de Segurança), exercia um poder constante.

Tanto na então chamada Metrópole como também nos territórios ultramarinos e adjacentes, fazendo uso da denúncia, tortura, julgamentos sumários, deportação, dos quais resultaram, não raro, a morte. Caxias, Aljube e Tarrafal, Peniche, são nomes com ecos dolorosos na História de Portugal.

Neste domínio, importa destacar a perseguição constante ao Partido Comunista Português (PCP), a resistência deste a quarenta e oito longos anos de “caça”, embora a luta contra o regime tivesse diversos protagonistas de diversas matizes e ideologias, como era o caso dos sectores católicos progressistas, monárquicos e socialistas, entre outros. Exílio ou clandestinidade: eram as vias possíveis de quem não se encontrava preso ou deportado. 

A única actividade política legal resumia-se à existência do partido do regime, a União Nacional/Acção Nacional Popular. Exímia na arte performativa. Eleições livres, tão pouco existiam. Foi o tempo de diversas “farsas” eleitorais que apesar, e se calhar por causa disso, ainda assim, abalaram o regime de Salazar e Caetano, ao longo das décadas após 1945.

A arte performativa política há pouco referida, embora tendo por base, a Constituição de 1933, era repositório de letra essencialmente morta ou dormente. Vejamos um exemplo: a Habitação. Apesar da Constituição então em vigor, no seu artigo 6º nº3 em sede de incumbências do Estado: “Zelar pela melhoria de condições das classes sociais mais desfavorecidas, obstando a que aquelas desçam abaixo do mínimo de existência humanamente suficiente”.

A verdade é que com toda a propaganda ao “ruralismo”, repressão e censura sobre o que de mal ia e havia no país, em 1970, ano da morte de Oliveira Salazar e só em Lisboa vivam 90 000 (noventa mil) pessoas em 18 500 (dezoito mil e quinhentas) barracas. Estas não pararam de aumentar nos anos seguintes.

De resto, os Censos realizados nesse mesmo ano, demonstram uma realidade que dificilmente se poderia classificar de outra forma que não de “miserável”. No Portugal do Estado Novo, 52,6% dos alojamentos não tinham água canalizada no seu interior; 41,9% não tinham retrete; 71,3% não tinham duche ou banho; em 36,2% sobrevivia-se sem electricidade e em 41,9% não havia saneamento.

E escrevemos “sobreviver” com propriedade: três anos antes, em 1967, as cheias provocadas por queda de chuva muito intensa, causaram mais de 500 mortos, na zona da Grande Lisboa, povoada por milhares de pessoas que sobreviviam em barracas. Salientamos que a zona do país em que mais choveu foi Cascais. Onde não morreu ninguém.

Portanto, reuniões e aglomerações populares só nas barracas que sonhavam ser casas, pois os direitos de reunião, de livre associação, bem como de manifestações eram proibidas, excepto, claro está, às que fossem a favor do regime e naturalmente, tal como a Revolução de 25 de Abril de 1974, não eram de “geração espontânea”.

Nas taxas de mortalidade infantil também não havia milagres: 55,5 óbitos de crianças com menos de um ano por cada mil nados-vivos. Saber ler e escrever no Portugal de 24 de Abril também não era para todos, ora vejamos: pouco mais de metade tinha a escola primária completa (52,2%) e 33,6% eram analfabetos. A taxa de actividade das mulheres também não ia além dos 25,8%.

Porque naquele Portugal, que é este, também não se discutia a Família e cada uma sabia o seu espaço, o seu lugar. Parece que terá deixado saudades…

Sem Paz

Portugal estava envolvido, desde 1961, numa guerra.

A guerra Colonial.

A guerra do Ultramar. 

A guerra de Libertação.

Três nomes para três guerras que são em si, uma só. Em três frentes não contíguas. 

Três frentes distantes da metrópole e longínquas entre si. Era o custo do desígnio imperial. O Império dos mitos e perpetuação de desigualdades e racismo. Outra das chagas que nos confrontam, meio século volvido.

O desígnio imperial colocara a “fasquia” muito alta para um país que de pequeno tinha muito. Uma elite política e industrial que não soube nem quis “ler” a História; que não percebeu como o Mundo mudara e que no processo sacrificou milhares de jovens vidas em todos os lados da guerra, entre mortos e estropiados de corpo e de mente.

Uma guerra travada em Angola, Guiné e Moçambique que absorveu fatias cada vez maiores dos recursos humanos e financeiros de um país escassamente industrializado e que sofreu um êxodo rural e migratório sem precedentes na sua longa História.

O primeiro esvaziou os campos e o interior do país. Uma parte foi engrossar as filas dos trabalhadores das indústrias que nasciam e outra parte, bem maior, deu o salto nas fronteiras e foi trabalhar, sobretudo para França, Suíça, Alemanha e Luxemburgo. Mais tarde para os Estados Unidos e Venezuela. Portugal não só era um “país pequeno”, como era um país isolado e cada vez mais vazio.

Só.

O que gerou o protesto de milhares de jovens e se transformou num dos temas dominantes da oposição ao regime, com especial realce para os estudantes universitários.

Hoje é difícil imaginar como era Portugal antes do 25 de Abril de 1974. Mas, se pensarmos que, por exemplo, as escolas tinham salas e recreios separados para rapazes e raparigas, que muitos discos e livros estavam proibidos, que existiam nas rádios listas de música que não se podia passar, que havia bens de consumo que não se podiam importar, que não se podia sair livremente do país, sobretudo as mulheres.

As mesmas que se fossem professoras, teriam de ter obrigatoriamente a autorização do Ministro da Educação Nacional para se casarem (!!!); que sobre todos os rapazes de 18 anos pairava o espectro da guerra, um serviço militar de quatro longos anos.

Com tudo isto e tanto mais, será porventura mais fácil compreender porque é que a Mudança teve de acontecer e como é que Portugal se tornou diferente.

50 Anos

Comemorar os 50 anos do 25 de Abril. Como?

Diríamos todos os dias. Não apenas relembrando-o mas melhorando-o. Em qualquer lugar ou circunstância. Em tempos exigentes, incertos e por vezes realmente infelizes.

Cometendo a ousadia de combater democraticamente quem o quer destruir e enterrar. Sob os mais diversos pretextos, usando de velhos truques com novos meios e o bafio de sempre. Vivemos desde 24 de Março de 2022, há mais tempo em Liberdade do que os anos que o Estado Novo durou. Hoje, 25 de Abril de 2024, passam 50 anos sobre a Revolução dos Cravos.

A liberdade individual, pois claro, a liberdade de imprensa, a liberdade sindical, o fim da polícia política, a liberdade de associação e reunião, a construção de um edifício institucional que é hoje o pilar da nossa vida política, a sedimentação de uma realidade constitucional que nos protege a todos enquanto cidadãos e que garante os nossos direitos e deveres colectivos.

É a arqueologia viva do 25 de Abril.

Em paredes pintadas e discursos vociferados, lemos e ouvimos e sentimos inúmeras vezes que “falta cumprir Abril”. É verdade.

Esta expressão não é património de um partido ou outro. Esta expressão é, sim, uma aspiração a um Portugal mais justo, equilibrado, desenvolvido e, diríamos, sobretudo decente. Mas passados 50 anos sobre A Data, aquela de que mais gostamos, e que a avaliar pelos resultados de uma sondagem recente, gostamos cada vez mais, não podemos deixar de salientar que muito está ainda por fazer. Por fazer melhor e para muitos mais.

Mesmo assim, a grande maioria considera que Portugal mudou e muito desde 1974 e que essas mudanças positivas são resultado directo da Revolução dos Cravos. 

Foi o 25 de Abril que fez com que Portugal deixasse de estar “orgulhosamente só” no mundo, com relações políticas ainda que sempre difíceis com outros estados igualmente isolados internacionalmente. Éramos notícia, quase sempre, pelas piores razões; pressionados, condenados e isolados.

Somos hoje, um país respeitado e considerado no dito concerto das nações.

A Liberdade é exigente.

A Democracia plural e aberta é exigente.

São-no em muito maior medida do que qualquer outro tipo de regime político. Que não haja ilusões ou saudades da “outra senhora”.

Isso obriga-nos a todos, curiosa expressão, a sermos mais exigentes também. Não de forma apenas panfletária nas intenções e no sofá confortável. A mera ausência de repressão, a realização de eleições justas e legítimas, não são condição “sine qua non” para uma fruição verdadeira nem tão pouco sinal de uma verdadeira Democracia e Estado de Direito Democrático.

Tudo isto exige justiça social, igualdade de oportunidades, solidariedade, e tolerância, participação política e mais, ainda. Não temos de viver num país pobre, envelhecido e que por vezes parece não ter um futuro à vista.

Um quinto dos nossos compatriotas vive fora de Portugal. A busca de melhores salários, tem levado tantos a procurar um futuro melhor lá fora.

Seja onde for.

Quando voltarem porque Portugal mudou, é mais um pouco de Abril que se cumpriu.

25 de Abril

A Constituição da República Portuguesa, que caminha também para o seu cinquentenário, é o pilar no qual assenta a nossa vivência em Democracia e Liberdade assenta. Que estejamos à sua altura.

É um entusiasmo muito grande. Importante e abrangente. Havendo entusiasmo, mais e melhores coisas acontecem.

Entretanto, num ápice, passaram 50 anos. Meio século de vida e história.

Continuemos a celebrar a Liberdade conquistada naquele dia.

Neste dia.

Registamos avanços. Igualdade de género, os direitos LGBT, a proteção do ambiente e a justiça social.

Avancemos.

Enfrentamos desafios. Corrupção, a pobreza e a exclusão social.

Enfrentemo-los.

A participação cívica e política é essencial para garantir que Portugal continue a ser uma democracia plural e inclusiva, onde todos os cidadãos têm voz e direitos. Neste aniversário do 25 de Abril, relembremo-nos e sejamos dignos da coragem e a determinação dos que lutaram pela liberdade e pela democracia. 

“Tanta foice isto é coice desconfio…

Tanto de marx martelar já cansa.

Adrede é labirinto não me fio 

no fio que o comício ao coro lança.

De tanto ruminar tanto Rossio

numa canga aguilhando tanta esperança.

Tanto poder ao povo com feitio

de espezinhá-lo depois da governança.

Tanta denúncia. É a pedagogia

da Revolução que o excremento avia

e não chegámos ao último terceto.

Recém-nascida apenas deste em cabra

Ó Liberdade! Não sei como isto acaba,

não sei como acabar este soneto.”

Natália Correia – “Já as primeiras cousas são chegadas I”

Viva o 25 de Abril de 1974!

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